sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Mulher Negra

Hoje na volta da faculdade no ônibus de sempre onde geralmente durmo a viagem quase toda, tive a oportunidade de ver uma mulher, negra, na casa dos seus trinta a quarenta anos suponho, era difícil dizer, pois às vezes, quando as pessoas não são realmente mestiças, fica complicado definir qual a idade certa; E essa mulher me parecia ter um pedigree dos bons. Mas a razão que me forçou a escrever sobre ela não existiu somente por causa da cor de sua pele ou pelo fato de ela ser um quadro vivo da soma de todos os males sociais de nossa época. Existiu, no caso, por ela ter consigo e para até o fim da vida uma queimadura enorme, borradamente cicatrizada, que ia desde a batata da perna até o rosto, subindo pelo lado esquerdo do corpo. Logo quando pedi para senhora de óculos escuros que sentava-se bem atrás dela dar-me à licença para poder-me sentar no lado da janela, e no seguinte instante em que virou-se para me dar passagem eu parei e vi a cicatriz da queimadura no braço da preta. E lá fiquei uns três ou quatro segundos paralisado, na verdade, meio estatelado, realmente imóvel olhando-a, em pé e ali entre a senhora de óculos escuros que me dava à licença e a negra dona da tatuagem de fogo sentada de costas a minha frente. Ela levava consigo no colo uma sacola grande, dessas de atacadão, cheia de roupas presumi, não tenho certeza, também não consegui reparar. Quando notei que a senhora de óculos escuros esperava para voltar a sua posição normal e eu a estava empatando terminei de sentar com minha bolsa pesada.
Não consegui me conter e não demorei muito pra fingir que me apoiava destraído no encosto de ferro do banco da frente para poder ver melhor a cicatriz da mulher negra. Detive-me ali observando-a e a sua cicatriz durante algum tempo, demorei para notar que estava acompanhada de um garoto, preto também, nos seus sete a oito anos, bem bonito por sinal, provavelmente seu filho... Foi neste momento em que me vieram como numa torrente vários pensamentos em relação a essa mulher: pensei nas estatísticas a que possivelmente estava atrelada levando em consideração ser ela mulher, negra, pobre e como isso ja não bastace, ter ainda, aquela tamanha cicatriz, pensei nos atos de preconceito que deveria sofrer por diversos fatores, pensei também em como ela tinha ganhado aquela coisa, pensei no que deveria dizer para as pessoas que tivessem a coragem de perguntar, pensei em como se sentia ao olhar-se no espelho e logo minha criatividade bizarra fez o favor de mostrar-me como deveria ser. Pensei em algo que o estado pudesse fazer em relação a ela, em relação a sua auto-estima, pensei também em como seria se fosse em mim que aquela cicatriz estivesse estampada para quem quisesse ver, imaginei como seria sua vida se não tivesse ganho aquela horrível cicatriz, tenho certeza de que sua vida antes de te-la ganho era completamente diferente e pensei também o quão dura deve ter sido essa mudança. É hipocrisia dizer que quase pude sentir como seria ter aquilo em mim, pois, impossível é sentir e saber como outro qualquer.
Daí, deixei de olhar, e tentei realmente dormir um pouco, minha ressaca da noite passada não dava trégua naquela manhã e com o balanço ininterrupto do ônibus ajudando, apaguei. Algum tempo depois, quando acordo, a senhora de óculos escuros que apertava minha coxa direita com sua coxa esquerda não estava mais ao meu lado no banco, porem, a mulher negra, fugindo do sol, estava agora acomodada no banco a minha direita, do outro lado do ônibus, na sombra. Olhei novamente para seu braço queimado, não precisava mais me esforçar escondendo meu olhar, não sei como descrever minhas feições a olhá-la nesta hora, agora tinha como ver que a cicatriz era muito maior do que o pouco que já tinha visto.
A cicatriz vinha da panturrilha esquerda subindo por joelho e coxa, passando por debaixo de sua pouca roupa tomando conta do braço esquerdo inteiramente e a grande parte da sua face do mesmo lado. Não sei dizer se aquela queimadura era de terceiro grau, mas com certeza tinha cacife para tal. É um tanto difícil de descrevê-la, parecia como se ela, a mulher negra, não pudesse dobrar o braço, pois não havia pele suficiente para isso. A pele era demasiadamente escura e cruelmente enrugada. Era como se seu braço tivesse sido pintado com uma tinta preta fosca e essa tinta se endurecesse numa casca torta e maleável. Realmente uma coisa horrível de se ver.
Olhei um bom tempo, ela estava entretida com o garoto que lhe falava entusiasmadamente, parecia querer-lhe mostrar algo ou estava a pedir qualquer coisa, não sei dizer, nesse momento tive pena, não sou insensível nem hipócrita o suficiente para mentir, mas é bem verdade que não gosto de vivenciar esse tipo de sentimento, se pudesse não teria pena de ninguém, mas foge das minhas mãos fazer com que isso se torne realidade.

Olhei bem, as figuras da mulher e do menino sentados no banco do onibus, ambos escuros como a noite, feridos e maculados por um mundo que não sabe muito bem o que faz...

Tive sorte de ela não voltar sua atenção a mim, me sentiria um lixo se tivesse notado que estava a olhá-la com desdém, e também não queira que se sentisse mais uma vez constrangida por razão de sua imagem, pois então parei repentinamente de olhá-la e pensei nela. Mais uma vez imaginei no que ela gostaria que os outros concretizascem dela, tomei a decisão de que gostaria de ser tratada como uma pessoa normal, de aparência normal, dona de uma vida normal, com quem sabe, uma ou duas marcas de espinhas na cara.
Não olhei novamente por um bom tempo, minha viajem é longa, quase atravesso a cidade inteira para chegar da minha casa na faculdade e ela não descia, passamos pela marcenaria que fica na curva que liga meu bairro a rua principal da cidade onde moro e ela não desceu. Acabei por olhar de novo, olhei pra sua mão que segurava a sacola grande apoiada em seu colo. Notei que alguns dos dedos dessa sua mão estavam "comidos". O fogo, ou seja lá o que for que fez aquela cicatriz, deve ter tido tamanha força que queimou os seus dois últimos dedos da sua mão, e a cor deles era clara como carne.
Minha parada chegou e saltei na frente da padaria como sempre, ela seguiu no ônibus, deve ter decido na integração do terminal para pagar uma passagem a menos e ir aonde quer que fosse.
Quando cheguei em casa e comecei a escrever esse texto, lembrei de outra coisa.
Lembrei que realmente... Ela era linda.

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